terça-feira, 23 de abril de 2024

Grândola, Vila Morena


No Porto


A Canção mais ouvida nestes 50 anos de Abril. Canção chamada à liça sempre que uma crise se anuncia. Nem é preciso ter boa voz ou conhecer música a fundo, nem ter especial filiação política. O povo é quem mais ordena é a mola que nos  impulsiona, o cante alentejano, a formação em fila, braço dado, o balanço, e o bater dos pés faz o resto e emociona. 


Os Ganhões de Castro Verde

Foi feita para homenagear os grandolenses, 1971:

“Grândola, Vila Morena” integrou o álbum Cantigas de Maio, de 1971, e foi gravado no Strawberry Studio, em Hérouville, França, com arranjos e direcção musical de José Mário Branco, então exilado em França, assim como Francisco Fanhais, um dos músicos que acompanham os temas deste registo. Ao contrário de outras composições de José Afonso, “Grândola, Vila Morena” – tema dedicado à Sociedade Musical Fraternidade Operária Grandolense – escapou ao lápis azul da censura."


Francisco Fanhais, José Afonso e José Mário Branco, 1971


E, agora, em 2024 é ela própria homenageada: 

"A Câmara Municipal de Grândola inaugura este sábado, 20 de Abril, o Museu Grândola, Vila Morena, um novo núcleo museológico do museu municipal, que contará a história do poema e depois canção de José Afonso, que se tornou uma das senhas do 25 de Abril de 1974. Um espaço interactivo e imersivo que assinala as comemorações dos 50 anos da Revolução dos Cravos". aqui

E no livro dedicado à evolução da canção política em Portugal lemos sobre Grândola, Vila Morena, estas palavras de José Jorge Letria:

(...)
As operações militares iniciaram-se por volta das três da madrugada, a partir das "senhas" musicais: "E depois do Adeus", interpretada por Paulo de Carvalho às 22 e 55 e "Grândola, Vila Morena", escrita e cantada por José Afonso.

Escassos minutos depois da meia-noite, dezenas de milhar de pessoas, de norte a sul do País, ouviram no programa "Limite", da Rádio Renascença, estrofes que diziam "em cada esquina um amigo/em cada rosto igualdade/o povo é quem mais ordena/dentro de ti ó cidade". Era, no entanto, reduzido o número dos que conheciam o significado exacto da passagem daquela canção. A apresentar estava a voz de Leite de Vasconcelos.

"Grândola" foi o sinal da arrancada, a certeza de que havia soado a hora da mudança. A escolha da canção de José Afonso, escrita alguns anos antes em homenagem à Sociedade Fraternidade Operária Grandolense e incluída no álbum "Cantigas do Maio" (...) foi, em larga medida, a consagração de um movimento de resistência cultural.

(...)no meio das marchas militares e dos comunicados do MFA, ouviram-se pela primeira vez sem qualquer tipo de restrições, as cantigas da resistência. Era o som da mudança. O toque de alvorada num país que se libertava, entre o espanto e a alegria transbordante, da opressão fascista.

"Grândola, Vila Morena" foi o hino de libertação, a ponte entre a resistência e a revolução, o apelo fraterno à unidade e à confiança.

In: A Canção Política em Portugal, de José Jorge Letria
pg 77/78

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GRÂNDOLA, VILA MORENA


ZECA  AFONSO



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domingo, 21 de abril de 2024

Diz





Diz mulher
ao teu país
como lutaste até hoje

o que fizeram 
de ti

o que quiseram 
que fosses

Como prenderam teu
grito
sob a boca amordaçada

Mas como cantaste
assim
do teu desgosto apartada

Diz mulher 
ao teu país

conta a vida em que
cresceste

Como algemaram
teus pulsos

conta aquilo
que aprendeste

Do saque da tua
vida
relata os dias passados

da cadeia em que estiveste
descreve
o pavor rasgado

as torturas que sofreste
o medo nunca acabado

Diz mulher
ao teu país
como lutaste até hoje

não cales mais
a recusa
do que quiseram que fosses...

não silencies
a renúncia
a que te viste obrigada

Não desistas 
de gritar
tua vida encarcerada

In: Mulheres de Abril
p. 21 a 23




Maria Teresa de Mascarenhas Horta Barros (Lisboa, 20 de maio de 1937) é uma escritora, jornalista e poetisa portuguesa. É uma das autoras do livro Novas Cartas Portuguesas, pelo qual foi processada e julgada em 1972, ao lado de Maria Isabel Barreno e Maria Velho da Costa. aqui


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sexta-feira, 19 de abril de 2024

Tengarrinha

À Memória do meu Professor, 

José Manuel Tengarrinha



Tengarrinha já tinha sido preso outras vezes. A mais violenta foi em 1961, quando havia sido duramente torturado. Desta vez, em 18 de Abril de 1974, levaram-no directamente para o reduto sul, para a última sala de interrogatório, ao fundo do corredor. Um inspector (...) perguntou-lhe o que estavam a preparar para o 1º de Maio. "Nada", respondeu. O inspector não insistiu e mudou de assunto. Queria saber se Tengarrinha estabelecera algum contacto com o movimento de oficiais que, um mês antes, estivera por detrás do golpe das Caldas e se tinha conhecimento de estarem em preparação novas movimentações. "Não sei", replicou lacónico.

O interrogatório durou várias horas, sempre à volta das mesmas questões. Já era noite quando o homem deu por concluída a sessão. "Da próxima vez vais falar. Ou confessas ou não sais daqui vivo", ameaçou. Deu-lhe uma semana para pensar e marcou novo interrogatório para daí a oito dias. Seria quinta-feira, 25 de Abril.(...) O inspector abandonou a sala e dois agentes entraram para conduzir Tengarrinha até ao reduto norte. Trancaram-no na cela de isolamento nº. 51.

Durante toda essa semana, esforçou-se por dormir o mais que conseguia. Sabia que ia ser sujeito à tortura do sono da próxima vez que o levassem para interrogatório. E temia o mais que lhe pudessem fazer.

Acordou em sobressalto na noite de 24 para 25 de Abril. Deveriam faltar poucas horas para o irem buscar, pensou. Nesse dia, no entanto, ninguém apareceu. Durante toda a manhã, nem sequer lhe foram entregar a côdea de pão e chávena de café que o guarda de serviço lhe levava todos os dias ao pequeno-almoço. (...)

As horas foram passando e também ele foi apercebendo dos vários indícios de mudança. Ao fim da tarde, ouviu, como os outros, informações dispersas sobre um golpe que derrubara o Governo. Depois de ter ecoado pela cadeia a voz de um preso pedindo prudência a todos os companheiros, Caxias calou-se. (...) Tengarrinha sabia da preparação de um golpe do MFA, mas também que estava iminente um levantamento da extrema-direita. Na altura, achou que a segunda hipótese era a mais provável. "Se for Kaúlza, vamos ser todos mortos", pensou.

José sentia-se profundamente só. Imaginava que os companheiros estariam despertos e apavorados. Precisava de ouvir uma voz, qualquer coisa que pudesse, ainda que, por segundos, tranquilizá-lo. Abriu a janela com cuidado, fez uma concha com a mão para abafar o som e perguntou, em voz baixa, ao preso do lado, igualmente em regime de isolamento: "Estás bem?" Ouviu-o levantar-se da cama e aproximar das grades. "Sim, e tu?" Não trocaram mais nenhuma palavra (...)

A noite estava gelada e o tempo parecia que não passava. Imagens de um fuzilamento tomavam-lhe o pensamento, sem que conseguisse afastá-las. Imaginou a angústia e o medo, o nó na garganta, a secura da boca e a vertigem no momento do fim. Via os agentes da PIDE a tirarem-nos das celas e a arrastarem-nos para o pátio, entre choros e gritos. (...)

Ao longo da noite, acabaria por aceitar esse destino. Sentia-se finalmente preparado. Já tinha amanhecido quando o silêncio em Caxias acabou. (...) As chaves rodaram na fechadura. José levantou-se. Parado à sua frente, um militar alto e louro, ladeado por dois homens, segurava uma G3.

_Como se chama? - perguntou-lhe.

José estava estranhamente tranquilo. Tivera tempo para se preparar para o fim. Chegara o momento.

_José Tengarrinha - disse.

_Pode sair. Está livre.

Afinal a manhã não lhe trouxera a morte. Mas faltaria ainda um dia inteiro para que efectivamente o devolvessem à liberdade.

Joana Pereira Bastos - In "Os últimos presos do Estado Novo - 

Tortura e desespero em Vésperas do 25 de Abril" - pgs 111 a 114


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José Manuel Marques do Carmo Mendes Tengarrinha (Portimão, 12 de abril de 1932 – Estoril, 29 de junho de 2018) foi um jornalista, escritor, historiador, professor universitário, presidente do partido político MDP/CDE e deputado à Assembleia Constituinte e à Assembleia da Republica de Portugal. aqui


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quinta-feira, 18 de abril de 2024

Ser livre





Eu não nasci com fome de ser livre. Eu nasci livre - livre em todos os aspectos que conhecia. Livre de correr pelos campos perto da palhota da minha mãe, livre de nadar num regato transparente que atravessava a minha aldeia, livre de assar maçarocas sob as estrelas e montar os largos dorsos de bois vagarosos. Contanto que obedecesse ao meu pai e observasse os costumes da minha tribo, eu não era incomodado pelas leis do homem nem de Deus. (...) 

Só quando comecei a aprender que a minha liberdade de menino era uma ilusão, quando descobri, em jovem, que a minha liberdade já me fora roubada, é que comecei a sentir fome dela. (...) Calcorreei esse longo caminho para a liberdade. Tentei não vacilar; dei maus passos durante o percurso.

Mas descobri o segredo: depois de subir uma alta montanha apenas se encontram outras montanhas para subir. Parei aqui um momento para descansar, para gozar a vista da gloriosa paisagem que me rodeia, para voltar os olhos para a distância percorrida. Mas só posso descansar um momento, porque, com a liberdade, vem a responsabilidade, e não me atrevo a demorar, pois a minha caminhada ainda não terminou. (...) 

Ser livre não é apenas livrar-se das próprias grilhetas, mas viver de uma forma que respeite e promova a liberdade dos outros. (...) Eu não tinha a menor dúvida de que o opressor tinha de ser libertado tanto quanto o oprimido. Um homem que tira a liberdade de outro homem está prisioneiro do ódio, está fechado atrás das grades do preconceito e da estreiteza de vistas.

Não sou verdadeiramente livre se estou a tirar a liberdade a alguém, tão certamente quanto não sou livre quando me é roubada a minha humanidade. Tanto o oprimido quanto o opressor são espoliados da sua humanidade.


Nelson Mandela,
in 'Long Walk to Freedom
(1994)'




Ser livre não é apenas livrar-se das próprias grilhetas, 
mas viver de uma forma que respeite e promova a liberdade dos outros. 

Se tivéssemos isso em atenção penso que seríamos mais felizes. Contudo, nem sempre atribuímos essa obrigação ou responsabilidade a nós próprios. 
Ficamos à espera que sejam os outros a tomar a dianteira ou a pensar que essoutros é que falham.

Nestes 50 Anos de Abril, Nelson Mandela não podia faltar aqui, no Xaile de Seda. E embora diga coisas que outros já terão dito, por outras palavras, nas publicações precedentes, tem um sabor especial a forma como as diz e ainda mais sabendo nós a sua história de vida.

 

NINA SIMONE



Feeling Good




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Nelson Rolihlahla Mandela (Mvezo, 18 de julho de 1918 – Joanesburgo, 5 de dezembro de 2013) foi um advogado, líder rebelde e presidente da África do Sul de 1994 a 1999, considerado como o mais importante líder da África Subsaariana, vencedor do Prêmio Nobel da Paz de 1993, e pai da moderna nação sul-africana, onde é normalmente referido como Madiba (nome do seu clã) ou "Tata" ("Pai"). aqui





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Texto-Citador

terça-feira, 16 de abril de 2024

Meu Pai, o que é a Liberdade?



- Meu pai, o que é a liberdade?

- É o seu rosto, meu filho,
o seu jeito de indagar
o mundo a pedir guarida
no brilho do seu olhar.

A liberdade, meu filho,
é o próprio rosto da vida
que a vida quis desvendar.

É sua irmã numa escada
iniciada há milênios
em direção ao amor,
seu corpo feito de nuvens
carne, sal, desejo, cálcio
e fundamentos de dor.

A liberdade, meu filho,
é o próprio rosto do amor.

- Meu pai, o que é a liberdade?

A mão limpa, o copo d’água
na mesa qual num altar
aberto ao homem que passa
com o vento verde do mar.

É o ato simples de amar
o amigo, o vinho, o silêncio
da mulher olhando a tarde
- laranja cortada ao meio,
tremor de barco que parte,
esto de crina sem freio.

- Meu pai, o que é a liberdade?

É um homem morto na cruz
por ele próprio plantada,
é a luz que sua morte expande
pontuda como uma espada.

É Cuauhtemoc a criar
sobre o brasileiro que o mata
uma rosa de ouro e prata
para altivez mexicana.

São quatro cavalos brancos
quatro bússolas de sangue
na praça de Vila Rica
e mais Felipe dos Santos
de pé a cuspir nos mantos
do medo que a morte indica.

É a blusa aberta do povo
bandeira branca atirada
jardim de estrelas de sangue
do céu de maio tombadas
dentro da noite goyesca.

É a guilhotina madura
cortando o espanto e o terror
sem cortar a luz e o canto
de uma lágrima de amor.

É a branca barba de Karl
a se misturar com a neve
de Londres fria e sem lã,
seu coração sobre as fábricas
qual gigantesca maçã.

É Van Gogh e sua tortura
de viver num quarto em Arles
com o sol preso em sua pintura.

É o longo verso de Whitman
fornalha descomunal
cozendo o barro da Terra
para o tempo industrial.

É Federico em Granada.
É o homem morto na cruz
por ele próprio plantada
e a luz que sua morte expande
pontuda como uma espada.

- Meu pai, o que é a liberdade?

A liberdade, meu filho,
é coisa que assusta:
visão terrível (que luta!)
da vida contra o destino
traçado de ponta a ponta
como já contada conta
pelo som dos altos sinos.

É o homem amigo da morte
Por querer demais a vida
- a vida nunca podrida.

É sonho findo em desgraça
desta alma que, combalida,
deixou suas penas de graça
na grade em que foi ferida...

a liberdade, meu filho,
é a realidade do fogo
do meu rosto quando eu ardo
na imensa noite a buscar
a luz que pede guarida
nas trevas do meu olhar.

in 'Canto para 
As Transformações do Homem'

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Publiquei este poema em 2018. Volto a fazê-lo hoje. E hoje mais do que nunca precisamos recordar-nos do que quer dizer esta palavra, do seu valor e do muito que ganharemos se todos nós a pusermos em prática. Propalá-la só em retórica não vale coisíssima nenhuma. É bom que tenhamos em conta que cada bom gesto poderá ser um sinal de paz. É um acto de amor que se manifesta nas mais pequenas coisas. E que, afinal, são grandes.
 



Jacques Brel
(08 /4/1929 - 09/10/1978)

La valse à mille temps


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Moacyr Félix de Oliveira (Rio de Janeiro, RJ, 11 de março de 1926 — Rio de Janeiro, RJ, 25 de outubro de 2005) foi um poeta, escritor, editor e intelectual brasileiro. aqui



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Citador - poema
Veja, aqui, no Xaile de Seda

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Veja, se lhe interessar:
Cuauhtemoc - O ultimo Tlatoani de Tenochtitlán ...
considerado o líder da Revolta de Vila Rica


sábado, 13 de abril de 2024

A Verdadeira Liberdade do Homem





Nunca acreditei que a liberdade do homem consiste em fazer o que quer, mas sim em nunca fazer o que não quer, e foi essa liberdade que sempre reclamei, que muitas vezes conservei, e me tornou mais escandaloso aos olhos dos meus contemporâneos. Porque eles, activos, inquietos, ambiciosos, detestando a liberdade nos outros e não a querendo para si próprios, desde que por vezes façam a sua vontade, ou melhor, desde que dominem a de outrem, obrigam-se durante toda a sua vida a fazer o que lhes repugna, e não descuram todo e qualquer servilismo que lhes permita dominar.

Jean-Jacques Rousseau
in 'Os Devaneios do Caminhante 
Solitário'


***
 
 
A pedra angular da teoria de Rousseau é a volonté générale, vontade colectiva da comunidade, diz-nos Christiane Zschirnt*, conceito que pode levar um líder delirante a transformá-lo num regime totalitário. 

Por exemplo, Robespierre, o líder dos jacobinos na Revolução Francesa soube levá-lo ao limite, instituindo o seu reinado de terror (La Grande Terreur), sem nada a ver, rigorosamente, com o pensamento deste grande teórico.



Ma Liberté


Serge Reggiani
(Autor: Georges Moustaki)


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Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) foi um filósofo social, teórico político e escritor suíço. Foi considerado um dos principais filósofos do Iluminismo e um precursor do Romantismo. Em sua obra mais importante "O Contrato Social" desenvolveu sua concepção de que a soberania reside no povo. Ver mais




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Citador - texto
O título do post,"A verdadeira liberdade do Homem" encima o excerto, na fonte.
*Obra citada:Tudo o que é preciso ler..

quarta-feira, 10 de abril de 2024

A minha Poesia sou eu





… Não, Poesia:
Não te escondas nas grutas de meu ser,
não fujas à Vida.

Quebra as grades invisíveis da minha prisão,
abre de par em par as portas do meu ser
— sai…

Sai para a luta (a vida é luta)
os homens lá fora chamam por ti,
e tu, Poesia és também um Homem.

Ama as Poesias de todo o Mundo,
— ama os Homens
Solta teus poemas para todas as raças,
para todas as coisas.
Confunde-te comigo…

Vai, Poesia:
Toma os meus braços para abraçares o Mundo,
dá-me os teus braços para que abrace a Vida.

A minha Poesia sou eu.


Amílcar Cabral,
in “Seara Nova”. 1946.




Amílcar Cabral, o homem que preconizava o diálogo. No poema cantado, abaixo, de António Gedeão ouve-se "mesmo morto hei-de passar". E passou. Não com a Concórdia que ele queria... 

Mesmo assim abriu os braços para acolher a Humanidade, 
transmitindo-lhe o que considerava um bem precioso:
a noção de liberdade.





Adriano Correia de Oliveira
"Fala do Homem Nascido"

(Poema: de António Gedeão
Música: José Niza)


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Amílcar Lopes da Costa Cabral, (Bafatá, Guiné Portuguesa, actual Guiné-Bissau, 12 de setembro de 1924 — Conacri, 20 de janeiro de 1973) foi um político, agrónomo e teórico marxista da Guiné-Bissau e de Cabo Verde. aqui



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Poema publicado aqui, no Xaile de Seda

domingo, 7 de abril de 2024

Liberta em Pedra





Livre, liberta em pedra.
Até onde couber
tudo o que é dor maior,
por dentro da harmonia jacente,
aguda, fria, atroz,
de cada dia.

Não importam feições,
curvas de seios e ancas,
pés erectos à luz
e brancas, brancas, brancas,
as mãos.

Importa a liberdade
de não ceder à vida,
um segundo sequer.

Ser de pedra por fora
e só por dentro ser.
- Falavas? Não ouvi.
- Beijavas? Não senti.
Morreram? Ah! Morri, morri, morri!

Livre, liberta em pedra,
voltada para a luz
e para o mar azul
e para o mar revolto...
E fugir pela noite,
sem corpo, nem dinheiro,
para ler os meus santos
e os meus aventureiros,
(para ser dos meus santos,
dos meus aventureiros),
filósofos e nautas,
de tantos nevoeiros.

Entre o peso das salas,
da música concreta,
de espantalhos de deuses,
que fará o Poeta?

Natércia Freire,* 
in 'Liberta em Pedra'




Livre, liberta em pedra, voltada para a luz para o mar azul 
e para o mar revolto...

O facho da liberdade que cada um traz em si, latente, em especial a mulher que, muito muito tarde, encontra o seu lugar na escrita do mundo dos homens.
 
Considerada como ser imperfeito, a mulher, sem outro préstimo que não fosse enfeitar a realidade desse mesmo mundo, foi a par e passo desabrochando, mercê de luta incessante ao longo dos tempos e compreendendo que o seu 
destino era outro.

***
  



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*Vale a pena ler a Biografia, mais completa, da autora, aqui, escrita por altura do
Centenário do seu nascimento.

Citador - poema

Imagem - net


quinta-feira, 4 de abril de 2024

Evolução







Fui rocha em tempo, e fui no mundo antigo

tronco ou ramo na incógnita floresta...

Onda, espumei, quebrando-me na aresta

Do granito, antiquíssimo inimigo...


Rugi, fera talvez, buscando abrigo

Na caverna que ensombra urze e giesta;

Ou, monstro primitivo, ergui a testa

No limoso paúl, glauco pascigo...


Hoje sou homem, e na sombra enorme

Vejo, a meus pés, a escada multiforme,

Que desce, em espirais, da imensidade...


Interrogo o infinito e às vezes choro...

Mas estendendo as mãos no vácuo, adoro

E aspiro unicamente à liberdade.


in "Sonetos"



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Um soneto que termina em glória. Encontra-se nele a consciência do ser que sente em si as dores do mundo. Que luta contra as emoções que poderão impedir a sua alma de se sublimar. Ainda no nebuloso limbo tacteia e depara-se 
com um ideal maior que é aspirar à liberdade. 




FREI HERMANO DA CÂMARA


-NA MÃO DE DEUS-
Soneto de Antero de Quental


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Antero Tarquínio de Quental (Ponta Delgada18 de abril de 1842 – Ponta Delgada11 de setembro de 1891) foi um escritor e poeta português do século XIX que teve um papel importante no movimento da Geração de 70. aqui




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Poema - Citador

imagem relevo cárstico - net

domingo, 31 de março de 2024

Ode à Paz





Pela verdade, pelo riso, pela luz, pela beleza,

Pelas aves que voam no olhar de uma criança,

Pela limpeza do vento, pelos actos de pureza,

Pela alegria, pelo vinho, pela música, pela dança,

Pela branda melodia do rumor dos regatos,


Pelo fulgor do estio, pelo azul do claro dia,

Pelas flores que esmaltam os campos, pelo sossego dos pastos,

Pela exactidão das rosas, pela Sabedoria,

Pelas pérolas que gotejam dos olhos dos amantes,

Pelos prodígios que são verdadeiros nos sonhos,

Pelo amor, pela liberdade, pelas coisas radiantes,

Pelos aromas maduros de suaves outonos,

Pela futura manhã dos grandes transparentes,

Pelas entranhas maternas e fecundas da terra,

Pelas lágrimas das mães a quem nuvens sangrentas

Arrebatam os filhos para a torpeza da guerra,

Eu te conjuro ó paz, eu te invoco ó benigna,

Ó Santa, ó talismã contra a indústria feroz.

Com tuas mãos que abatem as bandeiras da ira,

Com o teu esconjuro da bomba e do algoz,

Abre as portas da História,

deixa passar a Vida!

In: Inéditos (1985/1990)


***

A Paz! Senhora que nos fita do alto de várias incongruências, que nos acena, que nos sorri. E parece tão ao alcance das nossas mãos. Mas qual quê! Queremo-la realmente? Quantas e quantas vezes não pomos à frente as nossas próprias vontades.
Mas hoje saudemo-la, à Paz, desejemo-la com todas as nossas forças. Ela não é uma palavra vã. Olhemos para o que se passa lá fora, para as guerras que grassam e que fazem tantas vítimas. Vítimas de bombas das mais sofisticadas, da fome declaradamente visível. 
Quando vejo vultos de sacos ou volumes que caem dos céus, largados por aviões, e os pobres massacrados a correrem pela praia ou outros lugares para os apanhar, sendo por vezes atingidos pela metralha sem poderem gozar esse bem, começo a pensar que a nossa evolução como pessoas é uma "treta". 
A crueldade anda à solta.
 
E junto a minha voz à de Natália Correia:

Eu te conjuro ó paz, eu te invoco ó benigna,

Ó Santa, ó talismã contra a indústria feroz.

Com tuas mãos que abatem as bandeiras da ira,

Com o teu esconjuro da bomba e do algoz,

Abre as portas da História,

deixa passar a Vida!

***

BOA PÁSCOA
FAÇAMOS A NOSSA PARTE,
PARA A NOSSA REDENÇÃO.

Abraços

Olinda



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Poema: citador

sexta-feira, 29 de março de 2024

Que fazeis do mundo e da sua chama imponderável, ó homens





E então subimos aquele grande rio

e as portas do Ródão, chamadas. Era em abril,

dois dias depois da neve

e da cidade dos nevões, na serra.

E olhámos para os penhascos da beira-rio,

as oliveiras, o xisto, a cevada

as ervas de termo e as colinas.

E, junto da via férrea, os homens do país

miravam-nos como se fôssemos nós

e não eles os mortos desta terra,

homens do medo e do tempo da discórdia

que trazem para o cimo das estradas

a malícia que vai apodrecendo

seus pés neste mundo e em terras de outrem.

Que fazeis do mundo e da sua chama imponderável, ó homens,

perdidos que estais, hoje como ontem,

entre a casa e o limiar?

E evocámos, mais uma vez, esse provérbio sessouto.

E, na verdade, porque regressaremos,

após tantos anos, a este tema?

Será que a morte nos ensinou

a olhar para o homem com pavoroso êxtase?

JOÃO VÁRIO


Excerto de :
"Exemplo Relativo", 1968


***


Poeta denso e intenso, de difícil interpretação. Muito se tem falado dele mas não o suficiente porquanto é tido como pouco lido. Fala muito da morte, diz-se, e há quem diga que com razão. Quando pela primeira vez publiquei um excerto de um dos seus "exemplos", limitei-me a interrogá-lo, propondo percorrer o caminho por ele percorrido para o compreender. Mas para isso seria necessário ter o seu engenho e arte...


Ele é João Manuel Varela, de seu nome, mas também João Vário, Timóteo Tio Tiofe e Geuzim Té Didial. Foi um escritor, neurocientista, cientista e 
professor cabo-verdiano.

Estudou medicina nas universidades de Coimbra e de Lisboa e doutorou-se na universidade de Antuérpia, na Bélgica, onde foi investigador e professor de neuropatologia e neurobiologia. Ao jubilar-se, regressou à sua Mindelo natal.

Estreou-se com o livro “Horas sem carne” (1958), depois renegado. Participou em “Êxodo-fascículo de poesia” (Coimbra, 1961) e publicou “Exemplo geral” (1966) e “Exemplo relativo” (1968). Seguir-se-iam outros “exemplos” e a reunião na obra monumental “Exemplos- Livros 1-9” (2000).


***


TITINA




Noite de Mindelo - B.Léza




Bom fim-de-semana, meus amigos.
Abraços
Olinda



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João Vário, aqui, no Xaile de Seda

Leiam:

João Vário- Todo o homem é Babel aqui (a questão da heteronímia)

Antologia do Esquecimento - "Exemplos" - aqui

segunda-feira, 25 de março de 2024

Comemoração do Dia Mundial da Poesia (4)

 

Iniciativa da Rosélia

Blogue - Escritos d'Alma 




***


LE PARADIS PERDU


Je t'ai perdu il y a si longtemps

Je n'ai pas goûté ton nectar

Tes fruits, tu les as offerts à qui

Dans ta vie tu as 

mieux aimé


Et tu as desseché ton jardin de tout

Ce qui pourrait me rendre heureuse

Moi et toutes les forces de la nature

Nous pleurons ici, ce 

Paradis Perdu.







Perdi-te há tanto tanto tempo

Não cheguei a provar o teu néctar

Teus frutos ofereceste-os a quem

           Tu mais amaste 


E tu privaste o teu jardim de tudo

O que me poderia fazer feliz

Eu e todas as forças da natureza

Choramos, aqui, esse

Paraíso Perdido



***


Participação 4

Publicação de
Um poema por semana, 
ou prosa poética,
 em 
comemoração do dia Mundial da Poesia,

21/03


***


Neste meu último contributo para a Festa da Poesia, promovida pela nossa amiga Rosélia, interpretei a imagem como um lugar que poderia ter existido e albergado muitas emoções. Um "Paraíso Perdido". Aparece publicado, primeiramente, no idioma em que escrevi o texto.

Por motivo de saúde de familiar estarei ausente por uns dias.

Abraços 

Olinda


***


Ressonância do Mês de Poesia

Muito obrigada, 

querida amiga Rosélia



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Primeira imagem: da Rosélia